CENAS DO COTIDIANO

Asilados

Luiz Claudio Ferreira Alves, psicólogo

Os anos vívidos nas expressões corpóreas carcomidas dizem das experiências, conquistas e derrotas agora recolhidas em um pequeno espaço na moradia imposta. As lembranças a alimentarem saudades propulsoras dos modos de vida de um passado presente reduzem a uma maleta. Nem mesmo um baú de relíquias. Na memória, os tesouros escondidos, latentes.

As regras da casa são rígidas com os corpos moribundos, cambaleantes nos passos, disformes nas faces. Os adornos são proibidos e a vida ali deve ser levada sem maquiagens, em sonhos proibidos, esperanças roubadas, possibilidades vãs. Vai-se ao longe as contemplações quase narcísicas de rostos em vislumbres secretos de admiradores e admiradoras anônimos e outros confessos. As quatro paredes desnudas comprimem o corpo e a alma no quarto de dormir e contar os infindáveis minutos das horas lentas.

Do lado de fora a vida pulsa. Impedidos, contemplam as vozes que saltam os muros, os sons invasores nas buscas cotidianas em frenesi dos dias iluminados. Na noite, o silêncio em burlas raras como, no aqui, asilado o mundo fosse acolá. Vez ou outra na tentativa de sonhar o mundo vivo engana os vigias noturnos com seus soníferos em precisas doses em horas marcadas. Deixa-se levar pelo sonhar acordado até que o sono chegue por si acolhendo corpos encolhidos em abandonos indesejados.

No ostracismo forçado perdem-se as coordenações motoras finas em desuso. Se ali estão é como se não fossem mais em suas capacidades mínimas em movimentos intensos no alimentar, assear, pintar, desenhar, maquiar, pentear em tantos outros cuidados de si corpóreo em um não perder já que “nada está separado de nada. O que não compreendes em seu próprio corpo não compreenderá em nenhum outro lugar”.

Em afetos apagados, distanciam-se corpos, infantilizam as ações para que desejos não se manifestem em olhares que se cruzam, toques que se lançam, falas íntimas em ouvidos únicos. Antecipam fins dos desejos com medidas intensas de ladainhas de moralidades como se não habitassem ali corpos geradores de tantas vidas em enfrentamentos os mais diversos para que a quietude não acometa a vida teimosa do lado de fora. Aos de casa, drogas e castigos aquietam os murmúrios incontroláveis do desejo que habita e manifesta contornando controles frágeis, intensificando modos no resto de vida que sobra e sopra.

Alguns apenas transpõem os portões limites. No limiar, a retomada da existência. Um desconhecido sensibilizado ou um parente distante como que impingindo a si penitências por pecados praticados em palavras, atos ou omissões se abre a acolher aquele corpo de pura pele sobre ossos octogenários.

Agradecidos respira-se o ar que difere. Os matizes multicores compõem o cenário de vida neste lado de fora do muro. Os sons se misturam exigindo um decifrar de cada acontecimento ininterrupto do cotidiano. Caminha-se sem as próteses impostas, as muletas humanas em suas ações insuportáveis para o ganho do fim do mês. A voz se firma sem os soníferos de doses constantes, noite e dia, dialoga-se consigo, com o passante, com ouvidos postos e atentos.

Que demore uma vida a chegada da hora da volta marcada no transpor para o fim a soleira que mantém como reféns sabedorias, saberes e sabores de vidas a serem vividas. Antes do fim de verdade.