Entrevista com Íris Amâncio idealizadora da coleção

FOLHA DO SUDESTE: Quando você sentiu pela primeira vez a necessidade de uma linha de lingerie adequada à pele negra e como surgiu a ideia de criá-la?
IRIS AMÂNCIO: Nós, mulheres negras, sentimos esse tipo de desconforto principalmente na adolescência e juventude. São fases em que estamos nos desenvolvendo fisicamente e passamos a ter algumas necessidades pessoais mais específicas, no uso de lingerie, como meia calça, sutiã e calcinha. Nos anos 1970-1980, foi difícil o período em que eu queria usar meia calça da cor da pele, como era moda e meninas brancas usavam. Porém, todas as meias eram bege, da cor da pele delas e não da minha. Então, passei a usar meia calça colorida, com estampas exóticas, num design de que eu também gostava muito. Mais de uma década depois, isso se resolveu. Sutiã, por exemplo, existia somente branco, bege ou rosinha… Nos anos 1990-2000, vivenciei a mesma situação com a minha filha na pré-adolescência: sutiã existia, mas somente branco, bege ou rosinha… Enfim, tudo começou em casa, se estendeu para a nossa convivência social e entendemos, minha filha e eu, que isso era estrutural e afetava todas as pretas do mundo, infelizmente… Essa é a dinâmica perversa do racismo: por ser estrutural, ninguém percebe que ele opera, pois tudo fica naturalizado… Como Alice e eu trabalhamos com projetos, somos ativistas, feministas e antirracistas, não deu outra: em 2014, tomamos a iniciativa de criar uma grife brasileira, em diferentes tons de pele de pessoas negras. Depois de muita pesquisa em diversos fornecedores no período 2015-2018, entendemos que seria impossível adquirir a matéria-prima necessária. Daí, partimos para o desenvolvimento de cores indisponíveis no mercado brasileiro e chegamos à nossa marca Pret@ de Fibra, com peças confeccionadas em microfibra de alta qualidade tecnológica e sustentável, design anatômico e modelos exclusivos para mulheres negras.


FOLHA DO SUDESTE: Como se deram os processos de pesquisa para a produção da grife Pret@ de Fibra, desde a busca por matéria-prima até a elaboração dos modelos?
IRIS AMÂNCIO: Primeiro, buscamos alternativas de peças já existentes em lojas físicas e virtuais, mas não as encontramos de maneira a atender as nossas especificidades como mulheres negras. Em seguida, procuramos fornecedores que aceitassem desenvolver os tons necessários, mas muito poucos aceitaram nos atender quanto à produção dos tons. De 2018 a 2020, focamos nos catálogos de diversas fábricas e em algumas visitas a fabricantes de diferentes regiões do País. Por fim, encontramos três tons específicos que possibilitaram alavancar uma campanha de financiamento coletivo (Catarse) para conseguirmos recursos financeiros que permitissem o desenvolvimento dos outros dois tons que faltavam. Enquanto resolvíamos essa parte da matéria-prima, avançávamos também na concepção do design, fruto de muita escuta de mulheres negras sobre os seus corpos pretos e dificuldades com os modelos de sutiã e calcinha já existentes em variadas cores, contudo, sem esse olhar específico para mulheres negras como fazemos agora.
FOLHA DO SUDESTE: Então, a grife contou com o apoio da campanha “Eu não sou uma mulher?”, por meio do Coletivo “Preta SOU” – Mulheres Negras de Muriaé, foi isso? Houve mais apoiadores?
IRIS AMÂNCIO: Sim, nosso projeto foi acolhido pelo Coletivo “Preta SOU” que, de imediato, lançou o crowdfunding na plataforma Catarse, estabeleceu parceria com o Festival Internacional Latinidades 2021, promovido por jovens ativistas negras de Brasília. Além disso, várias integrantes do Coletivo nos apoiaram, disponibilizando o próprio corpo, suas vozes e seus saberes para a campanha, num gesto de tamanha generosidade e afeto que jamais vamos esquecer… Desculpe me alongar na resposta, mas não posso deixar de mencionar os nomes: Rosane Silva, Elizete Maria, Walkyria Mansôr, Emília Freitas, Marinqui de Paula, Thaís de Jesus, Amanda Faria, minha filha e eu protagonizamos essa primeira etapa. As fotos, de elevadíssima qualidade técnica, foram produzidas pela Carla Franklin, fotógrafa profissional que também integra o nosso Coletivo “Preta SOU”. Na verdade, acreditamos muito na cooperação como um caminho possível para mudar o mundo. Por isso, tudo o que promovemos é, prioritariamente, colaborativo, na perspectiva de um fazer comunitário. Por isso, considero importante destacar que tivemos apoio de mulheres negras de várias partes do Brasil e do mundo: Cristina Leão (MG), Isabel Miranda (MG), Rosália Lemos (RJ), escritora Lia Vieira (RJ), Verônica Bonfim (BA), Jaqueline Gomes de Jesus (DF), escritora Paulina Chiziane (Moçambique), Patrícia Matos (CE), Lorena Monique (DF), Aline Sezerdello (SP), Joyce Oliveira (RJ) e Pulquéria e Cândida Van-Dúnem Bastos (Angola). Essa é, evidentemente, uma iniciativa feminista antirracista que contou, também, com o apoio de mulheres brancas. Ao mesmo tempo em que muitas fizeram investimentos financeiros na campanha, recebemos a acolhida incondicional das irmãs Solange, Dodô e Ana Montesano, da confecção Fruto Proibido. Muriaé é um polo da moda e a empresa delas é genial na produção de lingerie de elevadíssima qualidade. Ao todo, somos mulheres empreendedoras, que lutamos por uma convivência social saudável, com respeito e empatia, porque acreditamos que a acolhida, a partilha e o afeto são os grandes pilares do mundo.

FOLHA DO SUDESTE: Como você enxerga que a falta de representatividade nos tons de roupas íntimas afeta a população negra? Quais são as expectativas para a grife Pret@ de Fibra no que se refere à luta antirracista?
IRIS AMÂNCIO: Com certeza, a ausência de roupa íntima para nós afeta tanto a nossa autoestima, as nossas escolhas e afetos, como também as nossas oportunidades para a vida. O racismo é uma dinâmica ancorada na negação da nossa condição de seres humanos. Isso é muito sério, perverso e grave, principalmente porque se manifesta de forma tão intensa nos vários setores das nossas vidas que, às vezes, nem percebemos de tão natural que se tornou… Então, a grife Pret@ de Fibra rompe essa naturalização da exclusão racial no contexto feminino e empodera mulheres negras a partir das suas subjetividades como mulheres que somos, na perspectiva da moda, da sensualidade e da geração de renda, assim como na perspectiva dos nossos direitos à calcinha e ao sutiã nas cores das nossas peles (nude), negados historicamente. Por outro lado, quebra também a antiga e falsa crença de que mulheres não colaboram com mulheres, ou a de que mulheres negras e brancas não possam ser parceiras nas suas lutas, ainda que marcadas por evidente diversidade. Pensar isso tudo com olhar crítico nos leva a ver, sem nenhuma sombra de dúvidas, o quanto o racismo e o machismo afetam as nossas vidas e que, por isso, precisamos estar sempre unidas contra esses absurdos que assolam as nossas vidas… Ao mesmo tempo, fortalece a nossa esperança para um futuro social pautado no bem viver para todas e todos, no respeito às diversidades. Isso é sustentabilidade!
FOLHA DO SUDESTE: Quais as expectativas quanto aos impactos do lançamento da grife Pret@ de Fibra em setembro? Vocês já têm perfil nas redes sociais e loja virtual?
IRIS AMÂNCIO: Estamos felizes porque o lançamento da nossa grife reacende o olhar para Muriaé, que já é polo da moda. A Pret@ de Fibra é a primeira grife, na América Latina, especializada em lingerie para mulheres negras e isso referencia Muriaé nos mercados nacional e internacional. Teremos o primeiro evento de lançamento presencial em Muriaé no início de setembro e, em seguida, faremos Rio de Janeiro e São Paulo. Já começamos a receber contatos sobre revenda e a nossa meta é startar e viralizar a grife nos próximos meses. Enquanto estamos fechando as negociações e providências tecnológicas, continuamos a trabalhar essa fase inicial de divulgação. A pré-venda será feita por meio das plataformas virtuais a partir de 25/08. Devido a um problema tecnológico na integração, precisamos adiar o início da pré-venda por alguns dias. Mas isso foi resolvido e, muito em breve, todos os nossos movimentos poderão ser acompanhados pela página no Facebook Preta de Fibra @lingeriemulheresnegras e pelo perfil no Instagram @pretadefibra_. Além desses, também é possível pelo meu perfil pessoal @irisamancioprofessoraeditora ou pela página Iris Amâncio @irisamancio.18 Em Muriaé, nosso projeto está sediado no hub Casa NANDY, espaço maravilhoso ali na Avenida Eudóxia Canêdo, 02. Informações: (32)98851-1559 ou pretadefibra@gmail.com

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